1918 – A gripe Pneumónica, ou Espanhola, na Imprensa

1918 – A gripe Pneumónica, ou Espanhola, na Imprensa

                        I had a little bird

                        Its name was Enza

                        I opened the window,

                        And in-flu-Enza

(Canção infantil de 1918)

Passam 100 anos sobre a pandemia de gripe de 1918/19, que ficaria conhecida como “Pneumónica” ou “Espanhola”. As suas consequências são bem conhecidas e o número de vítimas que provocou terá sido sensivelmente o mesmo das provocadas pela Grande Guerra. Mas num período muito mais curto. Em Portugal essa relação é diferente, porque a gripe terá provocado cerca de 60 000 mortes, sensivelmente o dobro das vítimas da guerra. As condições provocadas pela guerra, a falta de meios de socorro, a escassez de bens essenciais, influenciaram estes números.

Já muitas coisas foram ditas e escritas sobre os vários aspectos da pandemia, no que diz respeito à clínica, à epidemiologia, à organização das estruturas sanitárias, etc. Ricardo Jorge chamou a atenção para o facto de aparecerem os primeiros casos no início do Verão, ao contrário daquilo que se costuma esperar, que é de estar relacionada com os meses de Inverno. Talvez isso, de início, tenha levantado alguma confusão quanto à natureza da epidemia, mas Ricardo Jorge, já em Junho de 1918, não tinha qualquer dúvida em afirmar tratar-se de gripe. O que se pretende com este breve trabalho é mostrar como a imprensa apreciou e deu notícia do que se estava a passar. Procuramos dar uma visão do que transmitia a imprensa local e nacional sobre a epidemia. Por imprensa nacional queremos dizer os títulos publicados nas grandes cidades, Lisboa e Porto. Será duvidoso que tivessem uma verdadeira implantação nacional, embora se admita que pudessem chegar a algumas elites, sobretudo em função das simpatias partidárias. Ao avaliar os jornais da época, torna-se evidente que a “quantidade” de informação que é dedicada aos grandes temas da época, nomeadamente à Grande Guerra, não é tão extensa como estaríamos à espera, tendo em conta os padrões actuais. Porque estamos habituados a ver assuntos muito menos importantes, nos dias de hoje, consumirem uma quantidade de informação muito maior. Por isso, muitas vezes, as notícias são muito escassas. Claro que o espaço disponível era muito menor. Os grandes jornais diários tinham uma ou duas folhas, ou seja, duas ou quatro páginas, e cerca de metade eram constituídas por publicidade.

Apesar de apenas em 1917 entrar directamente na guerra, nos teatros de operações europeus, Portugal vinha já tendo confrontos com tropas alemãs, desde 1914, nas colónias. Por isso, e porque, cedendo a pressões dos Aliados, capturou em portos portugueses os navios alemães que aí se encontravam, Portugal viu a Alemanha fazer declaração de guerra em Março de 1916.

Em Portugal, 1918 foi um ano com características muito particulares. Para além das consequências, primeiro indirectas e, depois, directas, da guerra, da própria pandemia, vários problemas internos encarregar-se-iam de agravar a situação. A escassez de alimentos, aliada a práticas especulativas e açambarcamento (que nem são excepcionais em épocas de crise), o valor absurdo de alguns bens essenciais, a falta de condições de higiene e uma cobertura sanitária deficiente, influenciavam decisivamente as condições de vida dos mais desprotegidos. E todos estes problemas são apontados nas notícias, com maior ou menor insistência. A miséria de parte substancial da população é apontada como a principal catástrofe, por alguns jornais. Não é fácil caracterizar a época, a nível político: o sidonismo foi um regime republicano, mas com o apoio dos monárquicos que sonhavam ainda voltar ao velho regime; democrático, mas que não hesitou em suprimir liberdades quando se viu ameaçado. Durante o ano, greves, manifestações de desagrado pela forma como eram conduzidos os assuntos de estado, manifestações de militares descontentes, que viriam a culminar com o levantamento de várias guarnições, prontamente dominado, em Outubro, e que levou à declaração de “estado de sítio”.

           Em 14 de Dezembro, Sidónio Pais era assassinado na Estação do Rossio, em Lisboa.

Recentemente, Mark Honigsbaum na sua obra “Living With Enza: The Forgotten Story of Britain and the Great Flu Pandemic of 1918”, chama a atenção para o facto de não ter, esta pandemia, que terá custado mais de 50 milhões de mortos, uma representação na nossa memória colectiva como outras situações mais recentes como o Ébola ou a SIDA. Fica por explicar, de facto, como é que um acontecimento que matou, em algumas semanas, tantas pessoas, como uma guerra que durou quatro anos, seja uma história “esquecida”.

Uma nota para as várias grafias que encontramos ao ler os jornais da época. Apesar de já terem passado alguns anos sobre uma revisão ortográfica, são muito diversas as formas de escrita, que procuramos manter. Por isso, não será de admirar que textos coevos tenham grafias tão diferentes.

           O pico de mortalidade em várias cidades. Os valores são coincidentes com os nossos. A observação dos relatos da imprensa coincide com este período.

 

           “O Primeiro de Janeiro”

A partir do final de Agosto começa a dar notícia da evolução da epidemia. Em 30 de Agosto escreve:”Esteve hontem no governo civil o administrador do concelho de Baião a pedir providências para a epidemia que, do Marco de Canavezes, já alastrou ao seu concelho. Chamado o Sr. Dr. Almeida Garrett, e ouvido sobre o assunto, foi resolvido que para Baião seguisse uma brigada médica, com o necessário pessoal de enfermagem e material hospitalar, a fim de debelar o mal”.  Dos jornais consultados parece ser “O Primeiro de Janeiro” aquele que mais destaque deu à epidemia, e que melhor retrato traçou das suas consequências, nomeadamente no norte do país.                     Numa rubrica diária intitulada “A Província” ia fazendo chegar a evolução da doença, mas também relatava as dificuldades com que as populações se deparavam. Não só do ponto de vista sanitário, mas também da situação de miséria e fome que se ia vivendo, sobretudo no interior. Sempre com olhar crítico, não admira que algumas notícias viessem a ser alvo da censura. Aliás, é curioso o aparecimento de espaços em branco nalguns números, provavelmente por acção da censura, e sem tempo para fazer o arranjo da composição gráfica. Ou então para querer dizer alguma coisa. Em 31 de Agosto: “Mesão Frio- Debate-se o nosso concelho numa crise medonha de fome. Promessas, promessas e mais promessas…e não se vê que nos acudam com outra coisa, colheitas escacíssimas, quasi nulas, não há batatas no mercado e só por preços exagerados se conseguem; o trigo, feijão e arroz são considerados artigos de luxo”. E em 4 de Setembro dá uma ideia da situação no Porto e arredores: “Saúde Pública –  Estes casos pneumónicos entraram de nos visitar pela sua relativa frequência, cerca do Porto e em diversas freguesias de Gaia; um foco surgiu mesmo no Regimento de Infantaria 6, em praças procedentes daquele concelho. Causou alarme o sucesso, pois aconteceu aparecerem dois ou três casos debaixo da mesma telha, e sobrevir, às vezes a morte de chofre ao fim de dois ou três dias. As entidades sanitárias do Porto procederam solicitamente à pesquiza dos enfermos, e ao seu sequestro no Hospital Joaquim Urbano e às investigações laboratoriais precisas”. Segue-se o desmentido do boato de que se trataria de peste pneumónica, por se tratar de um receio pelo que se tinha passado em 1899 e 1904. E continuam as notícias diárias de várias regiões. Em 13 se Setembro reclama “Urgencia de providencias em Amarante – Há mais de quinze dias que esta villa está sendo alarmada por uma grave doença epidémica que em todas as freguesias do concelho tem provocado bastantes defunções. Os recrutas de artilharia já foram licenciados. Faleceram 15 soldados e 2 sargentos e os distribuidores de correio adoeceram todos. Para quatro dias depois e ainda em relação a Amarante noticiar: “a doença epidémica continua seguindo o seu rasto mortífero e devastador. N’estes últimos dois dias tem-se registado bastantes óbitos”.  

E continua a referir a situação em Mesão Frio e Santa Marinha do Zézere, onde “continua por aqui a lavrar com crescente intensidade a epidemia bronco pneumónica que tem feito muitas vítimas, prostrando famílias inteiras”. Um dado curioso é que, pelos relatos das várias regiões, parece haver diferentes níveis de gravidade ou, então, da sua percepção. Como as notícias chegavam à redacção a partir de correspondentes locais, temos também que pensar que esta avaliação poderia ser influenciada por simpatias políticas individuais. Em 25 de Setembro falava da situação de Bragança que “está hoje assolada por completo com a horrível doença- a infecção bronco-pneumónica- que tantas vítimas tem causado. Irradiou do quartel de Infantaria 30 com umas proporções tão assustadoras que a população, alarmada, não sabe qual o fim d’isto. Em menos de quinze dias morreram cerca de trinta recrutas, conservando-se o hospital militar sem um logar vago para receber mais doentes! É uma dor de alma ver rapazes fortes, filhos d’estas terras transmontanas, sucumbirem em menos de trinta horas! Entre eles alguns há que são atacados de loucura, sendo horroroso o espectáculo presenciado nas enfermarias”. E nos dias seguintes continua a dar notícia do que se passa no Porto e arredores, bem como em muitos lugares do norte. A par dos relatos da gripe, outros problemas iam aparecendo, mais limitados, mas não menos preocupantes. Em 3 de Outubro descreve a situação vivida em Oliveira do Bairro: “É deveras péssimo o estado sanitário d’este concelho. A epidemia denominada “diarreia bacilar”, que com muita intensidade aqui vem grassando tem produzido bastantes casos fataes”. Não é de excluir a possibilidade de aqui também se tratar de gripe, que em vários locais teve sintomatologia intestinal mais grave. Porque foi chamada de diarreia bacilar é que não temos qualquer registo, mas, localmente, pode ter acontecido que alguma autoridade sanitária defendesse a possibilidade de se tratar do bacilo de Pfeiffer.

A notícia do  encerramento das escolas aparece a 4 de Outubro: “Participa-nos o digno inspector escolar do bairro ocidental que, por ordem superior, foram mandadas encerrar as escolas officiaes, particulares e colégios do seu circulo”. E a 11 de Outubro noticia o fecho das fronteiras de Espanha “por ordem do governo espanhol, por motivo da epidemia que grassa no nosso paiz”. Claro que esta notícia pode induzir em erro, porque o governo espanhol fechou todas as fronteiras, por causa da gripe, mas não especificamente por causa do que se passava no nosso país. Como em muitas outras publicações, os comportamentos especulativos também foram noticiados aqui. Em 17 de Outubro denunciava “O abuso que urge reprimir: as autoridades deviam pôr um travão à desmedida ganância que se está observando na venda de mostarda e sinapismos, de que a medicina recomenda o uso imediato para combater os sintomas da gripe, que pode tornar-se em bronco-pneumonica. Os sinapismos estão a ser vendidos ao preço de 20 e 22 centavos cada um e a mostarda à razão de dez escudos cada kilo, ou sejam 10 gramas por 10 centavos. D’antes o kilo de mostarda custava 40 centavos. Como ha de um desgraçado, que mal ganha para o pão, combater o mal?” (Os sinapismos ou emplastros de mostarda, em pó ou sementes eram utilizados desde a antiguidade como anti-inflamatórios locais. Também se faziam com linhaça).

E já no final do mês de Outubro dá algumas receitas que podem ser úteis. Algumas um pouco surpreendentes: “Segundo o eminente higienista Francisco Heckel a opoterapia glandular pode ter muito interesse no tratamento da gripe: 5 centigramas de pó secco das cápsulas suprarrenal e thyroidea durante seis dias dão bom resultado. Os doentes no uso d’esse tratamento resistem n’um meio particularmente infectado”. Aconselha também como tratamento preventivo de desinfeção das musosas oral e nasal, “solução de glicerina salicilada a 1/50; glicerina iodada a 1/50; glicerina resorcinada a 5/100. Aos primeiros signaes naso-faringicos: secura so nariz, resfriamento, defluxo, sem mesmo esperar pela febre, o doente meter-se-á na cama e receberá imediatamente, sendo possível, uma injecção de cacodylato de guaiacol e, na falta d’este medicamento, de cacodylato de soda. Ficará desde logo submetido às pulverizações de azeite fenicado. Os escarros do doente serão recolhidos em recipientes contendo uma solução de formol. O doente deve assuarse a compressas que serão lavadas n’um recipiente de agua formolada”. No dia 1 de Novembro temos um interessante comunicado :”Declaração necessária. Como a censura nos tivesse cortado hontem trechos dos correspondentes de Braga, Vianna, Famalicao e Paços de Ferreira, só publicaremos de futuro, e sobre o assunto, notícias anódinas”. A partir desta altura começa a dar-se um declinar da intensidade da gripe e das notícias deste jornal, seja por esse motivo, seja pela intervenção da censura, porque, estando muitas liberdades limitadas nomeadamente depois do levantamento militar de meado do mês e instauração do estado de sítio, a divulgação da situação era mais controlada.

 

A gripe ameaçou o esforço de guerra

 

           “O Norte “– Diário republicano da manhã

Publicado no Porto. Órgão crítico do regime de Sidónio Pais. Talvez tenha sido a publicação que mais sofreu com os cortes da censura, vendo a sua publicação suspensa, mais tarde. Antes do pico da epidemia de gripe, acompanhou os desenvolvimentos da epidemia de tifo no Porto e outros concelhos do norte, referindo o número de casos notificados e óbitos verificados. Em 21 e 23 de julho os seus números foram apreendidos pela polícia. Não desistiu da sua linha editorial de crítica ao governo, aos dezembristas e aos que se opunham à participação na guerra, chegando a ser proibido pelo exército de fazer referências às suas posições. Em 24 de Setembro faz a primeira referência à epidemia de gripe. “Fontes – Penaguião – grassa nesta freguesia uma terrível epidemia. Centenas de pessoas estão doentes; muitas em perigo de vida. Casas de oito e dez pessoas estão fechadas, por estarem doentes todos os seus moradores. Extremamente pobres, sem recursos, sem médicos e sem remédios morrem ao abandono. Ontem morreram seis pessoas. Consta que a autoridade administrativa tem chamado para o caso a atenção de quem compete. Mas em vão. O Marco, Amarante, Vila Real foram socorridos. Não o será Fontes? Parece que o terrível mal foi importado de Vila Real, sendo portadores uns músicos vindos dali, a quem morreram já três pessoas de família. Em Vila Real, no quartel principalmente, tem havido muitos casos fatais. A nossa felicidade foi ter vindo para aqui passar as férias o dr. Portela; sem a sua grande dedicação morria-se para aqui ao desamparo. Um médico que estava também a passar as férias, assim que viu o incremento que a epidemia tomava fugiu covardemente para o Porto”. A partir do dia seguinte, 25 de Setembro, a sua publicação é suspensa, apenas voltando a 15 de Abril de 1919. Esteve, portanto, ausente durante o principal pico da doença. Admitamos que daria à gripe pelo menos uma atenção semelhante à que deu ao tifo.

           “Jornal de Notícias”

Em comparação com o “Primeiro de Janeiro”, não teve a mesma preocupação em dar uma visão global e proporcionar acompanhamento do que se estava a passar. Poderia também ser consequência da acção da censura, como dá conta em 25 de Julho: “A Censura – Em resultado das violências de que tem sido vítima por parte da censura, o nosso prezado colega o “Norte”, ainda hoje se não publica. Já ontem publicamos uma carta que nos foi enviada, como protesto contra aquelas violências. Porque a verdade é que, apesar de todas as modificações feitas à lei da censura, parece que ela está mais arbitrária do que nunca. E assim continua a imprensa sujeita a constantes vexames, oprimida e amordaçada, nunca sabendo a lei a que tem que obedecer, porque se vive em absoluto fóra da lei. Contra o facto protestamos novamente”. Embora esta notícia não esteja directamente relacionada com o tema, pode dar uma ideia sobre a tensão que se vivia a nível das redacções para dar as notícias que interessavam aos cidadãos.

A primeira notícia sobre a gripe aparece a 29 de Agosto, e para dar conta da situação no Marco de Canaveses: “Recebeu-se no sábado na Delegação de Saúde um telegrama do administrador do Marco, participando que neste concelho lavrava com grande intensidade a gripe bronco-pneumonica com bastante mortandade. Havendo no concelho um só médico, que caiu atacado da doença, pedindo por isso serviço sanitário rigoroso e urgente. Partiu para este concelho um médico e um enfermeiro e tudo o que é preciso para montar um hospital (leitos, colchões, roupas de cama, trem de cozinha, louças, medicamentos, etc.)”. No dia seguinte dava mais notícias: “As novas epidemias- Esteve ontem no Porto o sr. administrador de Baião, que veio conferenciar com o sr. Governador civil acerca da epidemia que está grassando naquele concelho, a fim de se resolver a forma de combate-la. Foi ouvido sobre o assunto o comissário do governo, sr. Dr. Almeida Garrett, ficando resolvido enviar para aquele concelho uma brigada médica com o respectivo pessoal de enfermagem e vario material hospitalar. No Porto há igualmente casos, como os há em muitas outras terras. Que providencias se tomam para evitar o mal? Não sabemos, mas a situação é muito grave.” Mas, como se sabe, não era a gripe a única preocupação porque, concomitantemente, outros problemas existiam, nomeadamente o tifo e a varíola. Em 12 de Setembro escreve o jornal: “O Tifo exantemático – Figueiró da Lixa – Está grassando com bastante intensidade na vila de Amarante o tifo exantemático, havendo ali a registar diariamente alguns óbitos.” Sucedem-se as notícias diárias. Em 19 de Setembro relata a situação de “Vila Real – É deveras alarmante o estado sanitário desta vila, onde estão atacadas de influenza mais de 500 pessoas. Alguns casos tem revestido a forma pneumónica, sendo quasi todos fataes. No hospital civil, onde tem entrado mais de 80 praças d’infantaria 15, quasi todo o pessoal de enfermagem está atacado. Já faleceram 14 praças.”.  A mobilização de médicos, e supõe-se que de outros profissionais não foi pacífica nem isenta de críticas, como se depreende de um extenso artigo, publicado em 27 de Setembro: “Foram dadas ordens para serem mobilizados todos os médicos, afim de seguirem para as terras de província que lhes forem destinadas, e onde está grassando com mais intensidade a epidemia bronco-pneumonica. Obedecendo a essa ordem, já hontem partiram para diversas localidades alguns clínicos desta cidade e hoje devem seguir outros, sendo para recear que a cidade, dentro em breve, fique despovoada de médicos. Mas na escolha desses médicos há desigualdades manifestas, pois me parece não atender-se a idades, sendo escolhidos indistintamente os primeiros que aparecem e que mais zelosos são no cumprimento da lei, muito embora nunca tivessem pedido nem aceitado do Estado qualquer favor ou remuneração. Não obstante alguns há que, de há muito, estão ao serviço da Delegação e doutras várias ramificações dos serviços de saúde, havendo-os até que não completaram o curso médico, e que aceitam de bom grado a grossa remuneração que recebem, mas a quem não agradam situações arriscadas e de responsabilidade”.

O problema da falta de médicos é novamente exposto no dia 3 de Outubro e deixa transparecer alguma falta de organização e critérios na sua distribuição, não se acautelando una distribuição equitativa: “O Porto sem médicos – Um grande perigo – Já chamamos a atenção das autoridades superiores para o facto de todos os dias sahirem d’esta cidade médicos que muitíssima falta fazem .É justo e urgente se torna que se acuda às populações que se debatem com a epidemia das bronco pneumonias gripaes; porém o auxílio a enviar pode ser feito de maneira a não prejudicar grandemente a cidade. Um especialista de doenças pulmonares, que é médico dos Caminhos de Ferro, foi destacado para longe, quando, só na secção de movimento, há mais de 500 empregados doentes, pelo que vão ser encerradas umas quinze estações das linhas do Minho e Douro. É Espantoso!” Esta notícia referindo-se apenas a um sector de actividade específica, dá bem a noção do caos que deveria estar instalado no país, E a notícia de 10 de Outubro transmite muito bem o ambiente que se estaria a viver: “Dobre a finados – Ninguém ignora que na cidade do Porto está grassando, entre outras epidemias, a influenza bronco-pneumonica. Há bastantes epidemiados e diariamente se registam casos fataes. Pois apesar de tudo isto, nem voluntaria nem obrigatoriamente, os sinos deixaram de planger em todas as torres citadinas. Desde pela manhã até à noite é um sucessivo dobrar a finados, como se a população inteira estivesse condenada a sucumbir vitimada pelo flagelo de última hora. A sugestão pânica exercida no animo dos enfermos é enorme, ante o continuado anúncio da morte no bronze das torres. Por misericórdia, quando não seja por dever, os sineiros devem temporariamente, enquanto a epidemia reina, abandonar a corda dos bronzes das egrejas, como aconteceu nas torres de província onde a influenza domina. Porque não seguem o oportuno exemplo? Do contrário pedimos para eles – a epidemia.” Só no dia 24 de Outubro são reabertos os estabelecimentos de ensino, no Porto, 20 dias depois do seu encerramento, por pressão dos professores dos colégios particulares.

Um dos acontecimentos marcantes e de que o “Jornal de Notícias” dá conta, foi o que se passou com o vapor “Moçambique”, que chegou de África. Na cidade do Cabo terão embarcado passageiros que vinham já doentes com a gripe. A grande aglomeração de passageiros, sobretudo na 3ª classe fez com que, rapidamente, se espalhasse a gripe. Daí resultaram 200 mortes e alguns relatos de passageiros emocionantes, como o de casos de alguns que se atiraram ao mar no delírio febril. Também este jornal procura dar notícia de soluções médicas para o problema: “Formula para a cura da pneumónica. O dr. Antonio Salvat Navarro, que tem actualmente a cátedra de bacteriologia e Hygiene da Universidade de Sevilha, diz que os casos de gripe são produzidos pelo enxerto dos germens denominados meningococo e pneumococo, umas vezes associados e outras separadamente. Ao apresentarem-se os primeiros simptomas da enfermidade deve injectar-se ao atacado vinte centímetros cúbicos de soro antimeningocócico em um dos lados do ventre, e, simultaneamente, quantidade igual de soro antipneumocócico no lado oposto”. E depois da opinião do médico espanhol, a vez de um italiano dar a sua opinião: “O jornal italiano a “Tribuna” diz que o médico militar Luigi Mielle encontrou uma medicação eficaz para a gripe espanhola, isto é, para a epidemia reinante. O processo do dr. Mille baseia-se no método profilático. Consiste em extrair uma pequena quantidade de sangue do doente. Aplica-se em seguida ao mesmo doente uma injecção com o “serum” assim obtido. Os resultados são quasi imediatos: as dores de cabeça desaparecem, bem como a depressão nervosa, ao passo que a temperatura se torna normal”. E a partir do dia 2 de Novembro são muito mais espaçadas as notícias da gripe, assistindo-se ao declínio da sua actividade.

 

           “A Lucta”

           Diário publicado em Lisboa. Já tinha havido um título igual no Porto, que, na altura já não se publicava. Fundado por um médico, Brito Camacho, tinha entre os seus colaboradores, José Magalhães e Ferreira de Mira também médicos, vozes activa em relação aos problemas ocasionados pela pandemia. Politicamente começou por apoiar Sidónio Pais, que apareceu como a esperança para “sanear a república”, corrigindo o que estava mal.  Acabou por se tornar uma voz crítica pela forma como tudo ia acontecendo, sobretudo pelo que às liberdades fundamentais dizia respeito. A primeira notícia relativa à gripe aparece em 29 de Agosto, num artigo assinado por Ferreira de Mira ( Professor de Química Fisiológica da Faculdade de Medicina de Lisboa e autor da “História da Medicina Portuguesa”), onde analisa as primeiras notícias sobre a epidemia e a comunicação feita pelo Dr. Ricardo Jorge ao Conselho Superior de Higiene, e também a evolução da epidemia de varíola e do “tabardilho”(tifo), referindo-se especificamente  ao Porto, que há oito meses sofria desse mal. E em relação à influenza, diz:” Sim, a influenza é, em geral, uma doença benigna, que vive em cada um de nós o tempo que leva uma rosa a esfolhar-se. Mas nenhuma é, como ela, traiçoeira em tremendas complicações, pondo à prova os vários órgãos e revelando ou agravando as suas insuficiências. É por isso que o médico convém como sentinela vigilante junto do “influenzado”.

           E apenas em 4 de Outubro volta a dar relevo à epidemia e para dar destaque ao fecho das escolas: “Pode dizer-se que já alastra por todo o paiz, e em Lisboa grassa ela com intensidade. Mandou o governo que não prosseguissem os exames nos liceus, e que todos os estabelecimentos d’ensino não funcionem até nova ordem. É certo que os teatros e os animatógrafos continuam abertos, e ahi a multidão, para efeitos de contágio, é mais perigosa que nas escolas.  Divergem as opiniões quanto à natureza da doença, e, a esse respeito, que nós saibamos, ainda não se pronunciou a Faculdade, ainda nada disseram os Mestres, os que são, oficialmente, as maiores autoridades na matéria. Conveniente seria, que até que a epidemia cesse, não atravessem processionalmente os cadáveres a cidade, em longos comboios fúnebres, repetidos a cada hora, grande como o número de vítimas que a doença faz. Um semelhante espectáculo não é de molde a conservar alto o moral da população, antes de certo modo o deprime, porque atesta o poder mortífero do agente epidémico, acerca de cuja natureza há dúvidas, não se conhecendo ainda os agentes higiénicos ou terapêuticos com que ele possa ser vantajosamente atacado. De resto, a multidão dos enterros, sob o ponto de vista de contagio, é tão perigosa como qualquer outra, guardadas as proporções. Visitas aos enfermos? Eles só precisam de visitas médicas, e dos cuidados da sua entourage. Acompanhamento de cadáveres? Eles só precisam que os levem.  para a cova. Eles dispensariam o exibicionismo a que os sujeitam, em demasia carnavalesco, com as bestas de luto e os gatos pingados de chapeu de bico, como numa patuscada funerária”. Bem, descontando o tom levemente exagerado do último reparo, notamos uma preocupação, de resto manifestada por outros articulistas, pela aparente incongruência das medidas tomadas e preocupação em relação à verdadeira natureza da doença. A esta, haveria de responder o Dr. Ricardo Jorge, logo no dia 7: “Há quatro meses que o mal reina no paiz, e o seu diagnóstico de influenza foi promulgado e divulgado pela estancia oficial a quem cumpria fazê-lo, e fê-lo, demonstrativamente, expositivamente, discussivamente de modo a ressaltar a sua inteira evidencia. Apareceram divergências? Uma só vi – a da febre dos papatazes, que impugnei e destruí- desfez-se. Outras não sei que tenham sido apresentadas, nem que outras haja apresentáveis”. Sobre o assunto podemos ver o que pensa o dr. Ricardo Jorge desta doença dos papatazes, que seria provocada por um insecto, em “A Influenza e a febre dos papatazes” – Imprensa Nacional de Lisboa – 1918. E na mesma nota diz ainda: “Estava-se habituado a uma grande morbilidade e uma pequena mortalidade pela influenza e, por via de regra, quando matava, as suas victimas eram indivíduos que tinham mazela, insuficientes dos rins ou do fígado, portadores de lesões cardíacas que ainda não tinham dado ostensivo rebate. Da influenza se podia dizer o que dizia Grasset da tuberculose- o melhor remédio contra ela…é ter uma boa saúde”.

           Apesar das explicações do dr. Ricardo Jorge, e sendo este um jornal que tinha como colaboradores médicos ilustres, a polémica continuava em relação à natureza da doença, por vezes dando a entender que haveria mais que uma forma de apresentação, como se lê no dia seguinte :”teem diminuído os casos de influenza broncho-pneumonica, mas aumentam os de gripe infeciosa, de caracter mais benigno, mas que também exige assistência medica. Esta doença afecta especialmente a garganta, fossas nasaes e meninges. Para evitar ou debelar a gripe infeciosa a medicina aconselha, alem doutras desinfecções, as inalações de infuso de eucalipto com tintura de benjuim”. O jornal vai dando ao longo dos dias notícia da evolução da gripe em várias regiões, fazendo o reparo a medidas tomadas pelo governo com alguma incoerência: “Foi retardada a abertura de todas as escolas para evitar aglomerações; pois nas egrejas desta cidade reúnem-se diariamente dezenas de crianças a fim de lhes ministrarem doutrina, o que é feito pelos padres e diversas senhoras. Não merecerá este caso a atenção das ilustres autoridades?”  “A Lucta” transcreve um artigo publicado no jornal francês “Le Temps” , de 3 de Outubro em que diz: “Na Academia de Medicina de Paris – Não há razão para chamar espanhola à enfermidade actual. A Academia de Paris sob a presidência do dr. Hayen, consagrou a maior parte sua sua última sessão a discutir a epidemia da gripe. O dr. Netter afirmou a identidade da gripe actual com a influenza dos anos de 1889 e 1890. O aspecto das duas epidemias é idêntico: casos benignos no começo; complicações pulmonares ulteriores que veem destruir o diagnostico. É necessário estudar a marcha da epidemia de paiz em paiz; mas não há nenhuma  razão para dar o qualificativo de espanhola a uma gripe cuja aparição se manifestou na Alemanha e em França, antes que na peninsula”. Em 21 de Outubro num editorial o dr. José Magalhães faz uma reflexão muito curiosa: “ Daqui a cem anos, ou duzentos, se quizerem, todas as associações profissionais terão os seus hospitaes privativos, os hospitaes da assistência publica serão reservados aos indigentes e a clinica domiciliaria ficará reservada aos casos leves”.  

 

 

           “A Monarquia” – Diário Integralista da Tarde

Director – Conde de Monsaraz

Redactor Principal – António Sardinha

Suspendeu a publicação em 25/10 e volta a 23/12/1918

Jornal nacional, que tinha como objectivo defender e divulgar os princípios do Integralismo Lusitano, ou seja, o regresso aos tempos áureos e gloriosos da Pátria. Para além de referir que um seu colaborador se encontrava doente com a “pneumónica”, no dia 15/10, não faz qualquer outra notícia sobre o assunto. Apesar de ser um jornal diário, e não ser possível desconhecer o que se passava no país e o elevado número de mortes, não faz qualquer alusão ao assunto. Curiosamente, mesmo em relação à Grande Guerra, numa coluna diária intitulada ”A Grande Conflagração”, pouco ficamos a saber da evolução da mesma, sendo evidente um interesse nos aspectos diplomáticos e na apreciação da entrada de Portugal no conflito.

 

           “A Situação” – Diário Republicano da Manhã

Como o nome sugere, tratava-se de um jornal que defendia o regime sidonista. Deu grande destaque à gripe, aproveitando, muitas vezes, as notícias para realçar o papel do Presidente da República. Em 22 de Setembro noticia: “Sua Exª o Sr. Presidente da República toma enérgicas providências para o combate da epidemia. Foi nomeado comissario do governo para o combate da epidemia de gripe pneumónica que está grassando o sr. Dr. Almeida Garrett, que tão brilhantemente dirigiu o combate do tifo exantemático que assolou o Porto e algumas terras do norte do paiz”. Ao ler a notícia fica a ideia que o problema estaria resolvido, o que não era verdade. O tifo só no ano seguinte viria a estar controlado. E continua: “Hoje temos a consoladora notícia de que Sua Exª o Sr. Presidente da República, não se esquecendo nunca de quem sofre, acaba de ordenar que parta imediatamente para a região assolada uma brigada de médicos militares”. E dois dias depois, noticia a viagem de Sidónio Pais para o norte, para se inteirar da situação: “O Sr. Presidente da República partiu para o norte. Acompanhado do director da Obra da Assistência, alferes Sr. Ferreira da Silva, e dos seus ajudantes, partiu esta noite, pela uma hora e meia, para o norte, em comboio especial. Sua Exª vai de visita às localidades mais atacadas pela epidemia pneumónica, como Amarante, Vila Real, etc. D’esta viagem do Sr. Presidente da República resultarão grandes benefícios para aquela região tão inclementemente mordida pelo flagelo epidémico”. No dia seguinte continua a descrição desta viagem, sempre com os maiores elogios ao Presidente da República, que se deslocou até Vila Meã, de comboio, donde seguiu, de carro, para Amarante, Vila Flor, Mirandela, Vila Real, Porto e Valadares, onde terá sido sempre recebido em apoteose, e em todos os locais se inteirou da epidemia e fez as recomendações que achou convenientes.

Em 25 de Setembro sob o título: “A Influenza Pneumonica vem de Hespanha até nós”, dá destaque à comunicação de Ricardo Jorge ao Conselho Superior de Higiene, “A vaga epidémica que nos princípios de Junho rolou de Hespanha, há que reconhecer que nos tratou com acentuada benignidade. Trazia já no seu séquito os ataques pulmonares, que mais serviram para caracterizal-a, mas não há duvida que foi o menos maligna possível: branda, de pouca demora, e até de mais fraca difusão que o habitual, pois, em muitos lugares houve apenas atingidos ou intactos. No seu foco original de Hespanha mostrara bem mais fereza, e ao europeizar-se não foram poucas as regiões onde a sua entrada amedrontou. Desde Agosto que uma nova vaga se enrola, sem a relativa inocencia da primeira. Tem este geito sabido a “influenza”, retorna quando menos se espera, em ondulações sucessivas, e estas reincidências costumam também requintar de gravidade. A experiência da pandemia de 1890 o patenteou, entre nós, como por toda a parte”. Das palavras do Dr. Ricardo Jorge se conclui que as autoridades sanitárias tinham consciência de que os relatos de aparecimento de novos casos se deviam a novo surto, e que viria a ser o mais grave, como já se disse.

De todos os jornais, “A Situação”, terá sido aquele que mais notícias deu sobre a epidemia, até Novembro, mesmo tendo em conta que o fazia muitas vezes para enaltecer o papel do Presidente e as suas preocupações em relação ao problema. Numa secção de “Província”, dava conta do que se estava a passar em todo o país, mesmo antes de haver um agravamento da situação em Lisboa. O que se passava na capital, é assim relatado a 11 de Outubro: “A entrada nos hospitais excedeu hontem a dos dias anteriores, para o que contribuiu o afluxo de doentes vindos dos subúrbios de Lisboa. Não poucos se apresentaram sofrendo de outros incómodos, ou apenas do mal estar da miséria. Está funcionando o Convento das Trinas para a hospitalização, que hoje mesmo começará também a fazer-se na parte terrea do Liceu Camões, que foi visitado e mandado apropriar para este efeito, pelo director geral dos hospitais e pelo director geral de saúde”. E também dá notícia da epidemia no Brasil. Não aparecem noutros jornais à situação da pandemia noutros países. Mas, como já se disse, este jornal apoiava o regime presidencialista de Sidónio Pais. Em 12 de Outubro há uma série de levantamentos militares por todo o país, de facções que se opunham ao regime, mas que foram derrotadas e os seus responsáveis detidos. Por isso, no dia 13 de Outubro é declarado o estado de sítio.

Assim, nos dias seguintes as notícias concentram-se nas repercussões da tentativa de derrube do regime e na  evolução da Grande Guerra. E em 16 de Outubro noticia o aparente declinar da intensidade da gripe: “O Sr. Presidente da República, atendendo à miséria dos epidemiados recolhidos nos hospitais, segundo as informações do comissário geral do governo, deu ordem para que a cada doente com alta fosse dada, à saída do hospital, um escudo, e à família dos que morrem nos hospitais, dois escudos a cada uma”. Quanto é que valia essa ajuda? O preço deste jornal é de dois centavos. Poderá servir de comparação se quisermos equivaler a valores actuais. A diminuição da intensidade da gripe em Lisboa parece não ser acompanhada no resto do país, porque no dia 20 diz-se que “Parece haver um  decréscimo da actividade da gripe em Lisboa, mas, no Porto os hospitais estão cheios e a delegação de saúde criou a assistência domiciliária gratuita, com medicamentos graciosamente fornecidos aos indigentes”. No dia 22 de Outubro “O Sr. Presidente da República convoca uma reunião de capitalistas e jornalistas. O objectivo é iniciar uma subscrição nacional para acudir às vítimas da epidemia”.  As notícias no jornal “A Situação” continuam a referir a evolução da epidemia em várias localidades até meados de Novembro. Curiosa é a divulgação de uma carta do conhecido actor Robles Monteiro, do Teatro S. Luiz, apelando para a ajuda às gentes da sua terra natal, S. Vicente da Beira, “onde a epidemia faz muitas vítimas e as ajuda são escassas”.

 

           “A Capital” – Diário Republicano da Noite.

Só em 4 de Outubro aparece uma referência, que não é mais do que publicidade a um produto farmacêutico: “A grippe pneumónica e as medidas prophilaticas: A maneira mais prática e commoda de desinfectar os bronchios é com o uso de bombons balsâmicos de chocolate com recheio de menthol e eucaliptol, e trazer no bolso um tubo de comprimidos dentríficos (sic) para preparar um elixir instantâneo. Para a desinfeção dos intestinos basta tomar por dia três comprimidos de Lactobiase do Laboratório Farmacológico de Lisboa”. Dois dias depois parece dar então importância ao que se estava a passar: “A actual epidemia e a falta de providencias das autoridades sanitárias que estudam o problema. A epidemia que está grassando em Lisboa atacou, pode dizer-se sem exagero, metade da população da capital. Veio de repente esse ataque? Não. Há um mês aproximadamente que o nosso colega Diário de Notícias vinha noticiando a marcha da influenza pneumónica nas terras da província. A epidemia foi alastrando, alastrando, aproximando-se pouco e pouco de Lisboa, onde começaram a afluir centenares, milhares mesmo de pessoas, vindas dos locais epidemiados e que, portanto, vinham contagiadas. Essas pessoas ou eram habitantes da capital, que estavam passando o Verão fora, ou dos arredores que fugiam para aqui, a fim de evitarem a doença. O que faziam, no entanto, as autoridade sanitárias da nossa terra, a quem incumbia tomar immediatas providencias? Contentavam-se uns em estudar se era o micróbio de Pfeiffer o causador da doença, outros se era essa causada pelo mesmo micróbio que já no tempo de Artaxeires III ( Artaxerxes?), quando da invasão do Egypto, tantas baixas fizera nos exércitos d’esse rei” (Nota: Não sabemos se houve aqui qualquer confusão com uma epidemia dos exércitos, mas de Artaxerxes II, rei da Pérsia, que o terá levado a pedir auxílio ao próprio Hipócrates de Cós). O micróbio de Pfeiffer refere-se ao bacilo de Haemophilus Influenzae, inicialmente conhecido pelo nome do cientista que o identificou, e que no final do século XIX se pensava ser o causador da gripe.

No dia 7 de Outubro, “A Capital”, levanta uma questão muito curiosa: ”Lembra-mo alguém, em face da epidemia, a situação dos presos políticos, encarcerados nas cadeias, ha tanto tempo, uns sem processo sequer, como os regressados de Angola, outros sem culpa formada. Foram tomadas providências pelas auctoridades para evitar que das cadeias parta o contagio para a cidade. Pelo menos foi esse o pretexto invocado para se prohibirem as manifestações de solidariedade que aos presos políticos queriam fazer os seus correligionários, por ocasião do anniversario da proclamação da República”. Este jornal mostra uma linha editorial bem diferente de “A Situação”, por exemplo. Não se exime a criticar as notas oficiosas e a desmentir as informações oficiais. No mesmo dia, em forma de comentário a uma nota ofícios das autoridades sanitárias, diz:”Ao contrario do que se diz na nota oficiosa, os preços dos medicamentos estão augmentando. Em algumas pharmacias já nem o custo da receita medica é escripto no rotulo da caixa ou frasco que contem o medicamento”. Faz-se aqui uma chamada de atenção para a possibilidade de especulação com medicamentos e falta de controle das autoridades. E no dia seguinte sob o título:”A Epidemia – as providencias que se deviam adoptar. Continuamos a insistir que houve e tem havido improvidência por parte das estações officiaes, em procurar atenuar com todos os meios de que dispõem, os efeitos da epidemia reinante. Não se tem procedido, ao que nos conste,  ao que de mais elementar sobre o assumpto se põe em acção nos paizes onde a saúde, a vida dos cidadãos merecem cuidados”.

Ao longo de todo este período vai fazendo várias referências à epidemia, com destaque para o que se passa em Lisboa. Não dá grande notoriedade ao que se passa no resto do país. Em 21 de Outubro deixa alguns conselhos para a prevenção da gripe: “A Profilaxia da gripe. A desinfecção da bocca e dos intestinos. A bocca é a porta d’entrada mais importante das doenças infeciosas. Uma das medidas profiláticas mais racional no tempo de epidemia consiste em desinfectar a bocca e o fundo da garganta, bem como as fossas nasaes, conforme aconselha Vallin da Academia de Medicina. O elixir dentrífico mais aconselhado é o da fórmula de Knopf, que empregou com êxito: essência de wintugreen (wintergreen?), 15 gottas; essência de hortelã-pimenta, 20 gottas; thimol, 1 gramma; acido benzoico, 10 gr.; alcoolatura de eucalyptus, 50 gr.; álcool a 90º, 350 gr. Emprega-se meia colher em três decilitros d’agua”. “ Seria muito interessante fazer-se o estudo de injecções de sóro de leite, semeado com Bacilus Bulgaris, para se ver se se conseguia inimizar os indivíduos contra a gripe pneumónica, da mesma forma que por via gástrica se defendem os indivíduos, da forma gastro intestinal da gripe”. Até ao final do mês vai fazendo referência à evolução da gripe, com críticas à forma como foram organizados os serviços, a indisponibilidade de médicos ( chega mesmo a propor a entrada em cena de estudantes de medicina a quem apenas faltava uma cadeira para terminar o curso), e dando conta do que se passa noutros países, nomeadamente Espanha, onde parece que as medidas de combate à doença são mais enérgicas. Também este jornal faz alusão ao fecho das fronteiras espanholas e ao facto de cerca de sessenta comerciantes portugueses estarem retidos na fronteira espanhola com a França, e ao pedido feito ao Dr. Egas Moniz, na altura com a pasta dos Negócios Estrangeiros, para junto do governo de Madrid, desbloquear a situação.

           “ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA”

Publicada semanalmente desde 1903, A “ilustração Portuguesa”, noticiava predominantemente acontecimentos da vida social, e, como o título sugere, era muito ilustrada. Não estaria no seu âmbito o tipo de notícias que eram dadas por outros órgãos. No entanto não deixou de dar ao assunto alguma importância. E logo em 1 de Julho o jornalista de uma das secções dá conta da sua própria experiência com a gripe, embora de forma muito ligeira. Sob o título “Com a Hespanhola”, relata assim o que se passou:”Pois é verdade. Cá estivemos com ela durante alguns dias, como toda a gente e somos a dizer que a “hespanhola” não é tão má como a pintam. Começa uma pessoa por falar hiperbolicamente, por exagerar o que diz; em seguida é atacada por um grande amor às castanholas e às pandeiretas, depois sente-se neutral, tem dor de cabeça, pigarro, vae para a cama, tem febre, larga a cantar malagueñas e pateneras e dali a dias levanta-se fraquíssima mas liberta da influencia de Castela, a assobiar com entusiasmo o hino da Restauração”. Seguem-se algumas anedotas alusivas ao tema, e a certeza de que estávamos a sair do primeiro surto.

Só no dia 21 de Outubro, e na secção “O Século Cómico” se volta a falar da gripe. Sob o título: “Proíbem-se os ajuntamentos – Se a gripe pneumónica, ou lá o que diabo é, tem alastrado por todo o paiz, não é, diga-se a verdade, por falta de providencias das autoridades competentes. A última, então, é eficassíssima, consistindo na proibição dos ajuntamentos, por meio d’uma circular que temos à vista e da qual resa o seguinte período:”…Recomendará o sr. Regedor ao Pároco da sua freguesia que ha hora da missa, em predica adequada, aconselhe aos paroquianos a que não se reúnam em ajuntamentos numerosos…” Estamos em que o conselho não deixará de produzir os seus efeito, visto que é dado a centenares de pessoas que se encontram ao mesmo tempo no mesmo local”. E a terceira e última referência a uma pandemia que matou cerca de sessenta mil pessoas, é feita em 28 de Outubro e para caricaturar a posição espanhola de fechar as fronteiras:”…É n’estas lastimosas circunstancias, quando não pode estar longe a saturação, que os zeladores da saúde publica no paiz visinho exigem os máximos cuidados na fronteira, impedindo a entrada dos portugueses, porque podem ser o veiculo do morbo que ali se instalou e que, segundo todas as probabilidades, de lá importamos.  Conhecendo, como conhecemos, a índole dos nossos vizinhos, não vemos razão para nos ofendermos: praticam d’estas incoerências não por mal fazer, mas porque são deveras engraçados. O que eles têm é muita piada- diríamos, se o calão fosse permitido em assuntos de tanta seriedade e não perturbasse a sisudez que deve revestir o estilo dos cronistas”. Como sabemos, a atitude dos espanhóis não foi só em relação aos portugueses, ao contrário do que a crónica deixa transparecer, porque fizeram o mesmo na fronteira francesa.

Com 20 anos de existência, a Aspirina era já utilizada com alguma regularidade

 

           “O Baionense”

Semanário Republicano Democrático

Em 4 de Setembro é publicada a primeira notícia sobre a gripe. Num extenso editorial, escreve o jornalista:”Não é preciso ser médico para constatar que a doença que aí grassa com crescente intensidade é de carácter epidémico, propagando-se com manifesta facilidade”. É também criticado o subdelegado de saúde, que se dirigiu ao Porto, para dizer que a doença não era epidémica, fazendo suspender a ajuda que estava proposta com reforço de meios para acudir às populações. O jornal também denuncia o facto do subdelegado de saúde se ter ausentado numa altura em que a sua presença era necessária, sem licença para o fazer e sem deixar alguém a substituí-lo. Neste mesmo número é transcrita uma nota de Ricardo Jorge para o Conselho Superior de Higiene, em que ele afasta a hipótese de se tratar de “pneumonia pestosa”, mas ser originada por “influenza”, e em que faz referência à situação na região do Marco de Canavezes. Em determinada altura diz “Em alguns povos de Marco de Canavezes, para onde a delegação de saúde enviou uma missão médica e toda a espécie de socorros, o mal acometeu com intensidade, há-de haver uns quinze dias, atingindo também o próximo concelho de Baião. É simplesmente a influenza pneumónica, já conhecida e experimentada, só excepcionalmente difusa, e sempre de pouca dura”. Parece evidente, por estas palavras do então Director Geral de Saúde, Ricardo Jorge, que estaríamos a sair do primeiro surto, e as expectativas para o que viria a seguir-se estavam completamente erradas. De salientar que neste jornal regional, as notícias sobre a epidemia ocupavam quase um quarto do espaço total. Durante todo o período foi evidente o tom de crítica ao subdelegado de saúde porque, segundo parece, só muito tardiamente se deu conta do que estava a acontecer e a tomar as medidas que se impunham.

Por isso não admira que em 18 de Setembro, e sob o título “Epidemia”, escreve o seguinte: “Mesmo sem licença do senhor Subdelegado de Saúde deste concelho, a gripe bronco-pneumónica, que S. Exª teimou em chamar “catarral”, vai fazendo numerosas vítimas. E não faz cerimónia em ceifar criaturas na pujança da vida”. Aqui é curioso verificar a referência que é feita à idade das vítimas. Sabe-se que vitimou preferencialmente crianças e adultos jovens. Uma das explicações é que os mais velhos terão estado em contacto com o vírus durante a epidemia de 1890 (Gripe Russa), que no nosso país não teve consequências particularmente graves. Mas nota-se neste jornal a necessidade de esclarecer a população e eliminar os medos que havia, esclarecendo que esta epidemia não tinha nada a ver com peste nem cólera. É muito interessante o artigo de 23 de Outubro “Sabedoria Sanitária – Guerra, Fome e Peste… Portugal está alarmad0o com o seu péssimo estado sanitário, que aliás se parece muito com o da França, da Alemanha e de quasi toda a Europa. Quanto à Hespanha, sempre pitoresca, essa fecha as fronteiras aos Portugueses não vão eles meter-lhe em casa a epidemia que, por sinal de lá veio… Mas não é só a Hespanha que é pitoresca, na sua maneira de encarar e tratar as pestilências. Esta ideia que nós tivemos de combater a epidemia, proibindo que se abram as escolas, e permitindo que funcionem os teatros e cinemas, também é de se nos cortar a cabeça, ou, pelo menos, de se nos tirar o chapéu”. Esta parte do artigo é uma transcrição do “Comércio do Porto”, a que o “Baionense” junta “Acham sensata a estranheza do ilustrado articulista do “Comércio do Porto”? Escapou ao Governo o encerramento das Igrejas, mais imperioso que o das escolas. E ao ilustre censor do “Comércio do Porto”, também as Igrejas passaram pela malha. Pois tanto ou mais que em teatros e cinemas, as reuniões dos templos são propícias ao contágio epidémico. Salvo erro…” E assim vai o “Baionense” dando conta da evolução da epidemia de gripe, até ao dia 4 de Dezembro em que faz referência à diminuição acentuada da intensidade do surto, ao mesmo tempo que noticia casos de tifo exantemático, que começa a afligir o concelho, nomeadamente nas freguesias de Trezouras e Teixeira.

Analisando as publicações dos meses de maior intensidade da epidemia, parece ser “ O Baionense”, dentro da imprensa regional, um dos que mais referências fez à Grande Guerra, para além das notícias sobre a gripe..

Médico a um a amigo do doente: “Este é um dos casos mais assustadores de influência ferroviária (?) (Nota- referência a uma via de propagação?), que eu alguma vez vi.”
“É um caso sem solução?”
“Não posso dar esperança relativa à sua recuperação e tudo o que posso recomendar é mudança imediata de lugar – o ar em seu redor está demasiado quente – e vou dar-lhe pó de St. James todas as noites durante uma semana.”

           “O Comércio da Póvoa de Varzim”

Semanário do Partido Republicano Português

A primeira referência à epidemia aparece no número de 6 de Outubro, num extenso artigo em que é publicada uma entrevista ao Dr. Raul de Carvalho, Analista do do Laboratório do Hospital Escolar de Lisboa. Também é feito um apelo à população no sentido de serem adoptadas medidas preventivas para combater a epidemia como “arejamento das casas, higiene dos corpos, cobertura das fossas, lavagem dos alimentos com água municipal”. Notícia de surtos pouco importantes aparece no número de 13 de Outubro e, na semana seguinte, a epidemia toma proporções que o jornal descreve desta forma: “A mortalidade vem aumentando assustadoramente por essas terras, e é ver como os jornais e a opinião pública vão atribuindo tudo isso à gripe pneumónica. É diagnóstico que corre mundo no nosso paiz e estrangeiro, e a chancela vai servindo admiravelmente para todas as vítimas, que na sua quase generalidade pertencem às classes pobres. A gripe tem costas largas, mais avantajadas que a fome que impera em todos os lares modestos e, além disso, é moda. E, no entanto, uma boa parte das pessoas que morrem com esse diagnóstico não deixa em casa um vintém, um pedaço de pão ou um vidro de remédio que denuncie tratamento equitativo e absolutamente necessário. Não será mais razoável, mais justo dizer-se que o maior flagelo actual e que maior número de vítimas faz, é a fome?”.

E no mesmo número faz referência ao encerramento das escolas, não só por causa da epidemia de gripe, mas também “à varíola que tem arrebatado a vida a dezenas de crianças”. E à falta de melhor remédio neste número anunciava-se “Contra a tosse e a epidemia – rebuçados de eucalipto da Padaria Valonguense”. A Póvoa de Varzim não terá sido das regiões mais afectadas, a avaliar pelo que escreve em 3 de Novembro:”É certo que a nossa terra tem sido relativamente feliz no decorrer do tremendo cataclismo que avassala o nosso paiz, mas, ainda assim, temos que procurar, não só prevenirmo-nos, como acudir a algumas das nossas aldeias”. Daí para a frente deixa de haver referências à epidemia de gripe.

Mr. Punch embrulhado em cobertores em frente da lareira, a comer papas de aveia, enquanto sofria de gripe.

 

           “A Evolução” – Orgão Evolucionista de Vila Real – Semanário

Director e Proprietário – Dr. José Joaquim Fernandes d’Almeida.

Partido Evolucionista de Vila Real

A publicação do jornal foi interrompida durante três semanas, a partir de 26 de Setembro de 1918. No número de 17 de Outubro é dada a explicação para essa suspensão: “Por motivo de doença de todo o pessoal da tipografia onde é impresso o nosso jornal, que foi atingido pela gripe pneumónica, e ainda por se encontrarem ausentes o nosso Director, Chefe de Redacção e alguns redactores, fomos obrigados a interromper a sua publicação durante três semanas”. Que notícia poderia dar uma melhor imagem da situação que se vivia? No mesmo número e sob o título “A Epidemia bronco-pneumónica-tífica” o jornal noticiava:”Nesta vila continuam bastantes pessoas atacadas pela terrível epidemia, não oferecendo, porém, gravidade o seu estado. Nas aldeias, apesar do serviço modelarmente executado pelas autoridades sanitárias, o número de epidémicos atinge uma cifra elevada, chegando muitos desgraçados a morrer ao desamparo, por os médicos que trabalham no combate à epidemia serem impotentes para levar o socorro que de toda a parte lhe pedem”.

Esta notícia merece dois tipos de reflexão. Em primeiro lugar o próprio título e a dificuldade que ainda havia na altura em classificar a principal causa da epidemia, porque, de forma mais ou menos simultânea havia populações atingidas pelo tifo. Em cerca de ano e meio, de Dezembro de 1917 a Agosto de 1919, o tifo terá atingido cerca de 9000 pessoas e provocado aproximadamente 1500 mortes. Em segundo lugar a contradição que a notícia encerra. Por um lado afirma ser de pouca gravidade e depois afirma que muitos “desgraçados” chegam a morrer ao desamparo. A forma como se dava apoio aos mais carenciados é descrito assim:”Os doentes pobres deste concelho têm a assistência médica e farmacêutica inteiramente gratuita. Os géneros alimentícios, assucar e arroz, são distribuídos aos pobres por meio de senhas que os médicos são obrigados a fornecer-lhes”. Como vemos incumbia, pelo menos nalguns locais, ao médico, que em muitos casos estava a trabalhar sem qualquer ajuda, a avaliação das necessidades das famílias e ter critérios para distribuir a ajuda. Sendo esta limitada, por força de várias circunstâncias, será fácil imaginar o peso de responsabilidade acrescido, para fazer o necessário com critérios justos.

E mais à frente, no mesmo número: “A epidemia reinante, diz um abalizado médico do nosso paiz, é uma bronco pneumonia tífica, com fenómenos tóxicos, mas graves, sobretudo com grande depressão geral”. A grande depressão deverá, por certo ao grau de debilidade a que chegavam os doentes que eram atingidos pela epidemia. E ainda aqui a opinião de um médico que engloba a causa tífica no diagnóstico da doença. E fazendo referência a opiniões de fora do país, diz: “Para combater esta terrível epidemia bronco-pneumónica, a Academia de Medicina de Madrid, aconselha queimar no interior das habitações, algumas vezes durante o dia, ramos de pinheiro, de eucalipto, rosmaninho ou qualquer outra planta resinosa ou aromática, juntando-se, se possível for, um pouco de incenso”. Em quase todos os relatos da epidemia, e não só aqui, é evidente a preocupação com as péssimas condições de vida, fome, aumento de preços de bens essenciais, e denúncia de processos especulativos por parte de agricultores e comerciantes, sem qualquer tipo de escrúpulos para com uma população que todos sabiam estar incapaz de pagar pelo que precisava. E tudo isto se passava no quarto ano de uma guerra devastadora e que, finalmente, se aproximava do fim. Mais um exemplo disso é dado por este jornal: “Na povoação de Vidago e aldeias próximas, encontram-se com gripe muitas centenas de pessoas, e, entre estas, há muitos casos de gripe pneumónica. Tem havido mais óbitos estes dias do que durante todo o ano em épocas normais. Faltam recursos de tratamento e alimentos. Há só um médico que se tem prestado ao tratamento de tantos doentes. A epidemia alastra ameaçadoramente, morrendo muitas pessoas, mais pela miséria em que se encontram, do que pela própria doença”.

No número seguinte em 24 de Outubro, sob os títulos “Nas Províncias do Norte”, “A Fome e a Doença” e “Uma Situação Apavorante a que é Necessário Acudir”, é feito o seguinte retrato:”É certo que no norte do paiz, principalmente na região duriense, d’onde vim há dias, a epidemia reinante tem causado centenares de vítimas. É certo haver povoações, em que desapareceram já famílias inteiras, em que há muitos fogos desertos de moradores. Não duvideis. A maioria dos que morrem são vítimas do desleixo mais triste e da ganância mais sórdida. O mal não está bem na epidemia- está nos que não evitam a fome. A peste é estarem três e quatro na mesma cama, por não terem que vestir, por não terem para cada família senão uma enxerga”

Um cartoon representando o impacto da gripe, reflectindo a forma trivial como a gripe era, por vezes, retratada nos jornais do dia.

           ” Soberania do Povo”

Director: Conde d’Águeda

Este bissemanário, de orientação monárquica, dá a primeira notícia da epidemia em 25 de Setembro: “Por motivo da epidemia de influenza pneumónica, que grassa em vários pontos do paiz, a Direcção Geral de Saúde expediu um telegrama circular aos Delegados de Saúde para se informarem de quaes são os médicos disponíveis, a fim de fazerem serviço em comissões remuneradas, dentro ou fora de cada districto, para prestarem a assistência reclamada”. E no número seguinte noticia acontecimentos, fora de Águeda: “A povoação de Mirandella decresce extraordinariamente, havendo dias de desaparecerem 15 pessoas. Em Penamacor onde têm morrido 5 a 6 pessoas por dia, o pavor aumenta de dia para dia”. Em 2 de Outubro cita: “Segundo o ilustre médico Dr Ricardo Jorge, Director dos Serviços de Saúde, a única forma ou a melhor forma de prevenção contra esta epidemia é a limpeza escrupulosa nas povoações e a de seus habitantes”.

No dia 5 de Outubro divulga o seguinte “Tratamento da Grippe – São muito úteis as seguintes indicações que podem aproveitar aos que forem atacados por gripe, enquanto o médico não intervem: Aos primeiros sintomas meter-se na cama e tomar uma chícara de chá de borragem bem quente: Phenacetina e Pós de Dower, 25 centigramas de cada um. Meia hora depois repetir a dose de igual forma. Cobrir-se bem com cobertores e suar a valer. De duas em duas horas tomar uma chícara do mesmo chá com duas gotas de licor amoniacal anisado. No dia seguinte de manhã, tomar 30 gramas de sulfato de soda desfeito em dois decilitros de água quente ou 300 gramas de limonada citro-magnésica reforçada. Na tarde do dia em que tomar o purgante já pode tomar um caldo de carne muito fraco. Nos dias seguintes leite e água de 3 em 3 horas, alternadamente. Mesmo depois de não ter febre, não se deve apanhar resfriamentos, nem comer demasiado. O tratamento é eficaz quando aplicado logo aos primeiros sintomas. No caso de dor no peito ou falta de ar, é preciso chamar o médico imediatamente”.

Notas:

Borragem ou Borrago – Planta existente em todo o sul da Europa e usada em infusões e cataplasmas.

Phenacetina – Medicamento anti-inflamatório e com propriedades antipiréticas, utilizado, na sua forma original ou em derivados até há pouco tempo.

Pós de Dower – Feito com ipecacacuanha ( emético e antitússico) e ópio. Naturalmente deveria produzir uma sensação de bem estar.

Licor amoniacal anisado – ou álcool amoniacal anisado, utilizado no tratamento de doenças respiratórias, já retirado, mas utilizado também em doenças do foro digestivo. Esteve disponível simples, e em associação com sulfamidas.

Sulfato de soda – utilizado como laxante. Também conhecido como sal de Glauber. Porquê utilizar um  laxante num doente que está debilitado? Eventualmente por estar o seu efeito catártico ligado a expulsão de humores prejudiciais? É possível que ainda aqui haja influência hipocrática.

Pela composição de alguns dos medicamentos aconselhados, provavelmente não alcance de todos, por serem dispendiosos, alguns tratamentos mais simples seriam feitos em alternativa ao que os médicos recomendavam.

Ainda o “Soberania do Povo” do mesmo dia, escrevia:”Diz-se que a epidemia de influenza pneumónica que invadiu muitas terras portuguesas, e que tantas vítimas tem já causado, tende, em algumas delas, a declinar. Desde o princípio do mês passado até ao dia 28, faleceram em Mira 150 pessoas, vítimas da epidemia, tendo as pessoas falecidas sido crianças e adultos dos 15 aos 25 anos de idade”. Nem sempre vemos este tipo de observação em relação à idade das vítimas, que viria a ser feita mais tarde, mas que este jornal já referia, e que parece reforçar a hipótese de haver maior imunidade, pelo menos em relação aos desfechos mais trágicos, da população nascida antes de 1890.

Em 26 de Outubro, sob o título “Cordão Sanitário”, e referindo-se à forma como as autoridades espanholas reagiram à epidemia, escrevia: “Está fechada a fronteira hespanhola. Ao longo d’ella, a Hespanha estendeu um cordão de tropas, a que chama sanitário, e que justifica com o facto de haver em Portugal a epidemia de gripe pneumónica- Ora dá-se o caso de em Hespanha (como em quasi todo o mundo),grassar a mesmíssima epidemia, e em alguns pontos (em Barcelona, por exemplo), com mais intensidade do que em qualquer terra portugueza. O procedimento da Hespanha não se compreende. Terá, antes, o referido cordão sanitário por fim evitar que a epidemia revolucionária, que envolve Portugal, passe a fronteira? Mas esta epidemia não grassa em Portugal só de agora- e só agora o cordão aparece estendido ao longo da fronteira… O que será? Isto está preocupando, e com razão, com toda a razão, uma parte da nossa imprensa. Aguarda-se que o governo se ocupe do assumpto, afim de que a opinião seja esclarecida. É preciso que o seja”.

Façamos aqui uma referência a este episódio de fecho da fronteira por parte de Espanha. Há vários jornais a referir este facto, e em todos é perceptível um sentimento de quase indignação pela atitude tomada. No entanto não é dito que a Espanha fechou todas as fronteiras. E se dermos uma vista de olhos pela imprensa espanhola da época, onde estão relatadas as medidas tomadas, e os pressupostos que levaram a que fossem tomadas, ficamos a saber que, mais do que a gripe, o principal receio dos espanhóis  eram a cólera e o tifo.

A seguir o jornal transcreve a opinião de um médico espanhol em que preconiza a utilização de soro anti-diftérico para o tratamento da gripe. O Dr. Thorvaz Maestre, Director do Laboratório do Instituto de Medicina Legal da Escola de S. Carlos, afirmava:”O soro antidiftérico, aplicado no mesmo instante em que apareça o primeiro sintoma, é da máxima utilidade. Apoderado do sector débil do corpo, o soro é um remédio de segura eficácia. É verdade que o soro antidiftérico ingerido pela bocca, em logar de usado em injecções, foi terapêutica idealizada por Darioz. Mas repito, porque já o disse, como é de justiça, que o tratamento de soro antidiftérico para combater a gripe foi usado primeiramente, com grande êxito, pelo doutor Joaquim Segarsa. Quando a gripe está avançada na sua evolução, sobretudo nas formas “hemolítica”, “meningocerebral” e “broncopneumónica”, que são as mais graves, os médicos, na ancia de encontrarem remedios, teem empregado tratamentos mais ou menos enérgicos, com orientações diferentes”. E a seguir o doutor Maestre enumera alguns dos tratamentos usados, admitimos, pelos clínicos mais conhecidos. “O doutor Herestas aplica na sua clínica hospitalar injecções de sublimado; os doutores Castillo e Piga usam o método de Barbary (injecções intramusculares de “colestrina” com azeite canforado); o doutor Piga emprega, nos casos desesperados, injecções de “soro coloidal” e de “electroargol”   (Nota: sobre este tratamento há uma tese de 1915 : “Pneumonía gripal: el electroargol en su tratamento”, de Ignacio Giuffra. O electroargol é prata coloidal); o doutor Sobrinho vale-se do iodo, com o qual, segundo afirma, obtém bons resultados; meu irmão Ponciano, medico que trabalha em Cartagenae que foi o primeiro que aplicou o soro antidiftérico em injecções contra a pneumónica, combate a gripe com a urotropina associada ao soro; um discípulo que tenho em San Javier (Murcia), D. José Maria Pardo, reduz o tratamento ao soro antidiftérico pela bocca em grandes doses”.

Como sabemos o soro anti-diftérico deve ser administrado por via endovenosa. Não é possível saber em que se baseava esta teoria, porque era administrada uma forma de imunoterapia específica. Mas, como o autor refere, não tinha qualquer risco: “Não se deve ter medo de pôr em pratica este tratamento, tomando d’este modo seis, oito ou dez ampolas de soro. Usado em bebida o soro antidiftérico é completamente inofensivo. O agente da gripe parece que acciona de duas maneiras: pelas toxinas que elimina ou pela acção local que realisa. Pela acção local ocasiona, como demonstraam as autopsias, a “bronco pneumonia” e a “meningoencefalites”. As “toxinas” do agente, eliminadas dentro do sangue, produzem alterações chimicas que são a genesis de dores contundentes, de certos fenómenos nervosos, de anormalidade nas secreções e da forma “hemolítica” da doença”. A este propósito deve dizer-se que noutros casos o soro anti diftérico, foi utilizado por outras vias de administração, incluindo a sub cutânea.

 

           “O Marcoense” – Defensor dos interesses do concelho

Neste jornal, de Marco de Canaveses, a primeira notícia da epidemia de gripe aparece no dia 5 de Julho de 1918. Muito provavelmente referindo-se ainda ao primeiro surto, que foi menos grave, a avaliar pela forma aligeirada como dá a notícia de uma caso: “Esta terra também recebeu a visita da tal Hespanhola, que tem alastrado por todo o paiz com desmarcada rapidez, sendo tam irrequieta como as salerosas niñas da Andaluzia, obrigando a recolher ao leito a maior parte dos habitantes deste logar. Foi o meu amigo snr. José Vieira Lamego, que a trouxe do Porto na sua companhia. Apesar da recomendação que lhe fiz, na véspera da viagem aquella cidade, para que não transportasse para cá nem o piolho branco, nem a hespanhola,não atendeu completamente ao meu pedido, porque embora deixasse lá o pilolho, não resistyiu à tentação de trazer a tal hespanhola, e tanto que, no dia seguinte ao seu regresso, foi para a cama com ella. Felizmente que a sua acção é benigna, e os seus efeitos duram, apenas, trez a quatro dias. Queira Deus que ella se retire muito brevemente daqui para bem longe”. Parece evidente o tom despreocupado com que era encarado o problema, porque, de facto, estávamos a pouco mais de um mês do início do segundo e mais grave surto de gripe que haveria de causar muitas vítimas. A notícia fala também no piolho branco,  referindo-se ao tifo que se ia espalhando pelo pais desde o final do ano anterior, e que tinha, no mês anterior, assolado o Porto e periferia, sobretudo a sul, provocando cerca de 2000 mortes.

Mas a partir de Setembro vai dando conta do aumento do número e gravidade dos casos de gripe. A partir do final de Agosto é improvisado um Hospital num pavilhão da Associação Beneficente, com 47 camas, que viria a funcionar até início de Dezembro, ainda que com escassos recursos. Na altura a villa dispunha de um médico, Dr João Leal, que acabaria por adoecer, e quando se restabeleceu foi chamado para prestar serviço no Porto. E ainda em Setembro a situação no concelho é mesmo referida por Ricardo Jorge numa “Nota apresentada ao Conselho Superior de Hygiene”, em que diz: “Em alguns povos do Marco de Canavezes, para onde a delegação de saúde enviou uma missão medica e toda a espécie de socorros, o mal acometeu com intensidade, há de haver uns quinze dias. Não se trata, porém – e a todos importa tê lo em vista- nem de pestilencia exótica, nem de nenhuma epidemia nunca ouvida, dalgum flagelo ignoto e misterioso. É simplesmente a influenza pneumónica, já conhecida e experimentada, só excepcionalmente difusa e sempre de pouca dura”. Esta nota cuja data se desconhece, mas que foi transcrita na primeira semana de Setembro, parece mostrar que se acreditava que estivesse achegar ao fim a epidemia e não apenas o primeiro surto, tendo o segundo começado sensivelmente nessa altura.

Mas o esclarecimento do Dr. Ricardo Jorge pretendia sobretudo assegurar às populações que não se tratava de qualquer outra doença, como a peste, por exemplo. E é importante saber que neste ano, para além da gripe e do tifo, houve ainda uma epidemia de varíola, que durou a segunda metade de 1918. O “Marcoense” faz várias referências, durante o período que durou a epidemia de gripe, à situação agrícola, com fracas colheitas, e a várias iniciativas de cidadãos mais abastados do concelho que promoveram várias iniciativas para minorar a fome da população.

           “O Districto de Portalegre”

Publicado na região do país que primeiro teve contacto com a epidemia, não é de estranhar que tenha sido um dos que primeiro a ela se referiu. Este jornal que tinha uma linha editorial de apoio ao governo sidonista, no dia 16 de Junho de 1918 dizia: “Conforme fôra previsto na nota apresentada ao conselho superior de higiene em 28 de maio, a epidemia de Hespanha invadiu e alastra em Portugal. Além de Vila Viçosa e Porto, apareceram casos epidémicos com febre, vómitos e diarreia nos concelhos de Elvas, Arronches, Extremoz e Redondo”. Daí em diante quase todas as semanas vai dando notícia da evolução da situação, e que não se limitava à epidemia de gripe. Parece que a varíola estava também a causar muitos problemas. Em 11 de Agosto escreve: “Com espanto temos notado que pelas ruas da cidade se veem frequentemente crianças, e até adultos, em convalescença da varíola, ainda em meia secagem, brincando e passeando livremente, sem que alguém a isso obste”. É curiosa esta observação de estarem os doentes em “meia secagem”. Refere-se, provavelmente, à existência de lesões ainda não completamente secas, em fase de crosta, e, por isso, em fase de contágio.

E as próximas notícias vão referir-se sobretudo à varíola. Apesar de ter sido uma das primeiras regiões atingidas, não conseguimos perceber pelas notícias uma grande preocupação com a gripe. Aliás em 13 de Outubro faz referência a várias epidemias que tem atacado a região, como o sarampo, a tosse convulsa e a varíola “que ceifou de grande na primeira infância”. “E é agora, para mal dos nossos pecados, a influenza pneumónica, que tendo nos andado em volta, só agora deu o salto, e algumas vítimas conta já no seu efectivo”. Portanto, parece que Portalegre, por onde a gripe terá entrado, só mais tarde veio a ter contacto com casos mais graves. Em 27 de Outubro um extenso editorial faz publicidade às iniciativas de “As classes dominantes perante a epidemia”. Ao falar do problema e das suas consequências divulga as iniciativas promovidas pelos notáveis da região no sentido de ajudar os que precisam. Com relevo para aquelas patrocinada por Sidónio Pais.

Em 3 de Novembro há a última notícia relevante sobre a epidemia, sobretudo para se referir ao que se passava na capital. “Lisboa tem estado verdadeiramente tumular. A epidemia tem feito grande número de victimas, a despeito de apreciáveis e acertadas medidas profiláticas do governo. Tem sido verdadeiramente impressionante e tocante a piedosa romaria dos que vão junto do coval ou do jazigo levar a pungente saudade dos que para o Além partem, deixando os seus imersos em profunda dor. Houve quem há dias presenceasse, comovido, na Avenida Almirante Reis, que serve o cemitério do Alto de S. João, o doloroso cortejo de 16 enterros em 5 minutos”.

           “O Algarve” – Semanário Independente

É em 22 de Setembro que este semanário faz a primeira referência à gripe, apenas para dar conta do comunicado da Direcção Geral de Saúde. Não faz qualquer alusão à situação local. No dia 6 de Outubro, num artigo mais extenso, dá a conhecer o relatório do Dr. Ricardo Jorge e da forma como seriam organizados os serviços sanitários no Algarve. No dia 13 uma notícia sobre a gripe com relativa importância, tendo em conta a dimensão do jornal, é curiosa. “Por falta de espaço e absoluta falta de tempo vamos resumir ao mínimo os assuntos que vamos tratar. A onda epidémica que em princípio de Junho rolou de Hespanha para Portugal, que o povo intitulou a“hespanhola”, foi relativamente benigna, posto que houvesse alguns casos fataes” Parece claro que na altura de maior intensidade da epidemia, não reconhecia, o redactor, importância suficiente ao assunto para gastar espaço ou perder tempo.

Também parece que não havia uma visão global do problema que permitisse avaliar correctamente a sua gravidade. E continua:” Interessante discussão se estabeleceu nesta ocasião a respeito do diagnóstico da epidemia entre os médicos do Porto e Lisboa. As revistas de medicina de Lisboa e do Porto vinham nesta ocasião interessantes. Os srs, drs. Américo Pires de Lima e Carlos Ramalhão, do Porto eram de opinião que se tratava de febre de trez dias, inclinando-se para esta mesma opinião o sr. Dr. Carlos França. Pelo contrário, os srs. drs. Ricardo Jorge e outros de Lisboa, insistiam no diagnostico de influenza. Em Faro, até hoje ainda não de verificou nenhum caso de bronco-pneumonica”. Mas parece que isso não era regra geral e o Algarve não estava a salvo da epidemia: “Em S. Braz de Alportel lavra com grande intensidade nesta importante vila a epidemia da gripe pneumónica tendo causado, em poucos dias, algumas victimas. Anda toda a gente alarmada e com justificado motivo”. E durante o mês foram tomando conhecimento da gravidade da situação em várias localidades do Algarve. E já no início de Novembro começaram a sentir-se alguma melhoria da situação. Parece que embora chegando mais tarde, a epidemia teve , no Algarve, as mesmas consequências que no resto do país.


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