Há cem anos …
Como se nascia e como se morria na nossa terra? Em 1918 chegava ao fim a Grande Guerra, o mais devastador conflito armado da história. Portugal, em permanente crise desde o início da República, sofria as consequências indirectas da guerra e, a partir de 1917, com a entrada no conflito do Corpo Expedicionário Português, sofreu directamente com a perda de mais de trinta mil homens em todos os teatros de operações.
1918 foi o ano da pandemia de gripe “espanhola” ou “pneumónica”, que provocou um número elevado de vítimas. A deterioração das condições de vida provocadas pela guerra ajudaram a tornar mais graves as consequências da doença, que no nosso país terá provocado cerca de sessenta mil mortos.
Se consultarmos a Imprensa da época, sobretudo a local, podemos ficar com uma ideia de como foi aumentando o nível de preocupação em relação à epidemia. De uma maneira geral, parece haver maior destaque à epidemia na imprensa local, do que nos principais títulos das grandes cidades, que davam maior relevo às notícias da guerra, que, entretanto, se encaminhava para o fim. No jornal “O Marcoense”, de 5 de Julho de 1918, temos a primeira notícia relativa à gripe, ainda dada num tom descontraído, até bem humorado, porque se estava a aproximar do fim o primeiro surto, que teria tido início em Maio, e naturalmente todos pensavam que o problema estaria a ficar resolvido. Transcrevo a notícia, com a devida vénia ao seu autor:
“ Feira Nova, 4 . Esta terra também recebeu a visita da tal “hespanhola”, que tem alastrado por todo o paiz com desmarcada rapidez, sendo tam irrequieta como as salerosas niñas da Andaluzia, obrigando a recolher ao leito a maior parte dos habitantes deste logar. Foi o meu amigo snr. José Vieira Lamego, que a trouxe do Porto na sua companhia. Apesar da recomendação que lhe fiz, na véspera da viagem àquella cidade, para que não transportasse para cá nem o piolho-branco, nem a hespanhola, não atendeu completamente ao meu pedido, porque, embora deixasse lá o piolho, não resistiu à tentação de trazer a tal hespanhola, e tanto que, no dia seguinte ao seu regresso foi para a cama com ella. Felizmente que a sua acção é benigna, e os seus efeitos duram, apenas, trez ou quatro dias. Queira Deus que ellase retire muito brevemente daqui para bem longe.” Jornal “O Marcoense” – 1918
Penso que esta notícia, e a forma como está escrita, é muito interessante. Nela podemos entrever como foi encarado este primeiro surto da “pneumónica”, mais benigno do que o segundo surto, mais grave, responsável pela maior mortalidade, e que iria ter início no final de Agosto, sensivelmente. Outra curiosidade da notícia é a referência ao piolho-branco. No mês de Junho tinha havido no Porto, e arredores, uma epidemia de tifo, que causou cerca de 2000 mortes. Terá sido esse o motivo da referência ao piolho, responsável pela transmissão da doença.
Somando o número de vítimas da gripe ao número das vítimas da guerra, numa população que andaria pelos cinco milhões e meio de habitantes, temos uma perda de quase dois por cento da população, ou seja, uma mortalidade que foi o dobro da média dos anos anteriores, e que provocou uma inversão do crescimento demográfico que se vinha verificando. 1918 foi o único ano da década em que o número de óbitos (40,18/1000) ultrapassou o número de nascimentos (28,79/1000). A população total das três freguesias – Alpendorada e Matos, Várzea do Douro e Torrão, segundo os dados dos Censos de 1911 era de 2644 ( 1193 varões e 1451 fêmeas, segundo a terminologia usada no relatório da Direcção Geral de Estatística) e em 1920 as três freguesias tinham 2621 habitantes recenseados. Quanto ao nível de alfabetização da população, ela era semelhante ao resto do país, havendo, no total das três freguesias, 677 pessoas que sabiam ler em 1911 (75% de analfabetos), e 678 em 1920, o que dá as mesmas percentagens. Embora estejamos a abordar populações muito limitadas, e, por isso, tirar ilações estatísticas seja um pouco abusivo, os números parecem mostrar que os primeiros dez anos da República ainda não tinham conseguido atingir um dos lemas apontados pelo Governo de Teófilo Braga: “O Homem vale sobretudo pela educação que possui”. Pelo menos por aqui.
Quanto às freguesias que compunham a actual, Alpendorada , Várzea e Torrão, Alpendorada parece ter sido a mais atingida pela “pneumónica”. Dos 52 óbitos registados nesse ano ( em 1917 tinha havido 24), 29, ou seja, mais de metade, foram registados nos últimos três meses de 1918, o período de maior actividade da gripe, com diminuição da natalidade em relação aos anos anteriores e subsequentes. Em Várzea do Douro e Torrão o número de óbitos foi ligeiramente superior aos anos de 1917 e 1919, mas, também aqui, mais de metade nos últimos três meses do ano.
Quando avaliamos estes dados de natalidade e mortalidade, não podemos deixar de comparar com a nossa realidade actual. E uma das coisas que mais impressiona é o número de óbitos de crianças, que era muito significativo em relação à mortalidade global. Por exemplo, em Agosto de 1919, na freguesia de Alpendorada houve nove óbitos. Todos de crianças com menos de dez anos. Ainda tentei perceber se haveria alguma coisa que o explicasse, mas este achado não se repete nas freguesias vizinhas e não tem qualquer destaque na imprensa local (Jornal O Marcoense). No ano de 1918 num total de 112 óbitos nas três freguesias, 39 foram de crianças com menos de 10 anos e 60 nos últimos três meses do ano, correspondendo ao pico mais grave da “pneumónica”. Aliás a morte de crianças não tinha o impacto que tem hoje. Tenhamos em conta a escassez (ausência?) de meios para combater a principal causa de morte daquela época: as doenças infeciosas.
Portanto, podemos concluir que nascer e morrer há cem anos, nesta terra, como noutras, era muito diferente dos dias de hoje. O ano de 1918, foi, ainda por cima, um ano de calamidades, que deixaram a população em muito más condições. Para além da Grande Guerra e da “pneumónica” ou “espanhola”, um Verão muito agreste condicionou um péssimo ano agrícola, com a consequente fome para uma parte importante da população. Na imprensa é feita referência a várias iniciativas de proprietários locais que faziam grandes fornadas de pão para distribuir pela população mais necessitada.
Outro tempo…
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